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Riscos de Integridade na Cadeia de Suprimentos: Estratégias para uma Governança Corporativa Robusta – Parte 1/4

Por Manuel Marinho, CEO da EthQuo, Conselheiro de Administração Certificado pelo IBGC

Esta é a primeira parte de um texto de quatro partes. Não deixe de acompanhar as próximas postagens que serão publicadas em breve. A segunda parte já está disponível, clique aqui para ler.

No ambiente corporativo, organizações estão em contínuo relacionamento com terceiros, das mais variadas categorias.  Os relacionamentos podem se dar com terceiros facilmente determináveis, como ocorre em esferas de negócios, institucionais ou sociais, mas também com públicos indeterminados, difusos.  Nos itens a seguir, listamos algumas categorias de terceiros, em suas respectivas esferas de relacionamento com a organização:

  • Negócios:  fornecedores, clientes, parceiros, patrocinadores, investidores, financiadores, sócios/acionistas etc.;
  • Institucionais: autoridades regulatórias ou fiscalizatórias, associações de classe, sindicatos, órgãos governamentais etc.;
  • Sociais: empregados, administradores, comunidades do entorno, populações influenciadas pela cadeia de valor etc.;
  • Públicos indeterminados ou difusos:  opinião pública e população em geral (especialmente em assuntos ambientais envolvendo geração de resíduos, produtos não recicláveis, emissões, consumo responsável de recursos etc.).

O propósito deste texto é oferecer uma visão mais focada sobre os riscos de integridade de terceiros que ocupam a cadeia de suprimentos da organização, onde se originam os danos que mais recorrentemente causam impactos adversos significativos.

Esperamos que você encontre no conteúdo a seguir dicas úteis para que sua organização consiga desenvolver estruturas, práticas e processos capazes de consolidar uma boa governança dos interesses vinculados à sua cadeia de suprimentos, prevenindo contra riscos de integridade de terceiros e sedimentando um ecossistema de parceiros que contribuam para o capital reputacional de seu negócio.

Boa leitura e pode contar com a EthQuo na execução de ações inspiradas nas sugestões abaixo.

1.            Alguns conceitos

1.1          Stakeholders:

A gestão e representação das empresas ficam a cargo de seus Administradores (Diretorias, Presidência e órgãos similares) e essas funções não necessariamente são executadas por seus donos (genericamente, os sócios).  É bem verdade que a situação mais comum é encontrar um ou mais sócios em cargos de gestão, mas também há empresas nas quais isto não ocorre, especialmente as de capital aberto ou em grandes grupos econômicos.  Nesses casos, a influência dos sócios sobre a gestão da empresa se dá principalmente por meio do voto, em assembleias de acionistas, por exemplo.

Sócios sem presença na Administração da empresa são, portanto, partes interessadas nos atos da gestão e em seu desempenho.  Diversos outros agentes econômicos e sociais obviamente também se interessam pelo desempenho da empresa e pela repercussão dos atos ou omissões da gestão no ambiente externo (as externalidades), tornando a empresa um núcleo de interesses que se irradia para públicos diversos, tais como:  fornecedores, clientes, empregados e suas famílias (as pessoas), governos, entidades regulatórias, comunidades do entorno do empreendimento, a opinião pública geral, dentre outros.  Os sócios e todos esses públicos são as partes interessadas na empresa, normalmente referidos na literatura como “stakeholders”.

Os executivos à frente da gestão da empresa e seus stakeholders podem ter interesses conflitantes.  Esta frase soa contraintuitiva em um primeiro momento, mas é verdadeira.  Na teoria de Governança Corporativa, este fenômeno é conhecido como “conflito de agência”.  Este fenômeno decorre principalmente do fato de que os gestores de uma organização tendem a prestigiar ações que maximizem resultados de curto prazo, que se refletem em suas remunerações; ao passo que os demais stakeholders normalmente preferem resultados que se perpetuem ao longo do tempo, visando à sustentabilidade da empresa em todas as frentes – financeira, social e ambiental – ou ao menos em algumas delas.

É crucial que as organizações mantenham compromissos de curto prazo, mas sem abdicar de seus objetivos de médio e longo prazos.  Para tanto, devem ser adotadas medidas para que os interesses de curto prazo dos gestores não se sobreponham aos interesses de longo prazo dos demais stakeholders, e uma estrutura de governança corporativa robusta (o “G” em ESG) é o instrumento mais efetivo para esses fins.  No diagrama a seguir (Diagrama 1) pode-se ter uma visão sinótica dos diversos núcleos de interesse que orbitam a gestão de uma organização.

Diagrama 1

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A estrutura de governança deverá suportar a definição dos direcionadores estratégicos da organização, além de prover mecanismos para que os executivos a cargo de sua gestão atuem em prol da sustentabilidade financeira, social e ambiental do negócio como um todo, satisfazendo a todas as categorias de stakeholders de forma contínua e perene.

1.2          Matriz de materialidade

A matriz de materialidade é uma ferramenta utilizada para a determinação dos assuntos que são prioritários para uma organização, no tocante aos impactos ESG.  A matriz correlaciona as questões mais relevantes para a própria organização e para seus stakeholders, evidenciando os temas ESG que devem receber prioridade estratégica, tática e operacional.  Quando a matriz de materialidade é aplicada a um negócio, a visão alcançada se assemelha à do diagrama a seguir (Diagrama 2 – modelo sugestivo):

Diagrama 2

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A primeira parte do exercício de construção de uma matriz de materialidade é o mapeamento dos stakeholders da organização, seguido do levantamento de todos os temas de impacto ESG que são de interesse de cada uma das categorias mapeadas, com indicação do grau de relevância desses temas nas respectivas agendas.  O exercício pode ser suportado por entrevistas, pesquisas de campo, conteúdos científicos (consultorias, estudos, artigos), benchmarking etc.  A multiplicidade de fontes de dados e a amplitude da amostra de stakeholders certamente contribuem para a qualidade da análise.

Semelhante exercício deve ser feito junto aos gestores da organização, tendo como fonte de dados o próprio negócio e pesquisas de mercado.  Nesta frente, o público-alvo são os executivos em posições de liderança na empresa e as informações podem ser obtidas em relatórios internos, estudos e projeções solicitados pela própria Administração.

O grau de importância de cada tema ESG pode ser obtido a partir de uma nota atribuída, em uma escala numérica simples.  Como exemplo, em uma escala de 1 a 4, teríamos:

  • Grau 1 = importância baixa
  • Grau 2 = importância moderada
  • Grau 3 = importância alta
  • Grau 4 = tema crítico

A plotagem dos resultados nos quadrantes da matriz sugerida no Diagrama 2, acima, apontará o nível de prioridade de cada tema ESG para a organização, a ser observado em seu planejamento estratégico anual, definições táticas e modelo de estrutura operacional.  Opte por um sistema de graduação bem claro e objetivo, para garantia de uniformidade de entendimento por parte de todos os envolvidos (gestão e stakeholders).

1.3          Cadeia de Suprimentos

Quando se fala em cadeia de suprimentos, é intuitivo pensar na lista dos fornecedores de matérias-primas, materiais de embalagem e outros itens intermediários utilizados na fabricação de produtos que sejam centrais ao negócio.  Mas a agenda ESG propõe a adoção de uma visão ampliada do conceito, abrangendo também as comunidades nas quais se originam as matérias-primas e as condições de atuação dos colaboradores contratados por parceiros em todas as etapas do ciclo de produto (incluindo o descarte futuro de dejetos e embalagens, após o consumo).

Por conseguinte, ao se pensar na cadeia de suprimentos de uma organização, é necessário ir além dos fornecedores e considerar um ecossistema mais amplo, que inclua todos os atores na etapa de consumo, impactos sociais e ambientais de todos os integrantes desse ecossistema e seus entornos, conforme o segmento de operação do negócio.

Na linguagem de Governança, os parceiros que fazem parte da cadeia de suprimentos da organização, com os quais ela interage direta ou indiretamente no plano negocial, são genericamente referidos como “terceiros”.  Eles formam um recorte na população de stakeholders e têm relevância fundamental na operação e representação institucional do negócio.  No item 2.1 falaremos mais sobre os terceiros na cadeia de suprimentos da organização.

1.4.         Integridade de terceiros

A seleção dos terceiros que são admitidos na cadeia de suprimentos de uma organização habitualmente leva em conta a existência de boas referências em termos técnicos, financeiros e operacionais (qualidade de produto ou serviço, saúde financeira, histórico no mercado, experiência prévia no segmento etc.), e a maioria dos processos de onboarding avalia cuidadosamente tais atributos.

No entanto, com a relevância alcançada pela agenda ESG, referências positivas em termos de excelência técnica, financeira e operacional já não são suficientes.  É igualmente importante assegurar que os terceiros integrados ao ecossistema da organização também tragam (e mantenham) um elevado capital reputacional, regulatório e legal, demonstrando um destacado perfil de integridade.  Alguns exemplos simples já bastam para uma perfeita compreensão do porquê – veja a seguir uma pequena lista deles e pense no efeito fulminante para a organização e todas as suas marcas quando:

  1. Descobre-se que um fornecedor de destaque de uma indústria de alimentos de proteína animal também é dono de fazendas multadas pelo IBAMA, por invasão de terras demarcadas ou desmatamentos;
  2. Vem à tona o fato de que um fornecedor importante de uma rede de varejo de vestuário mantinha empregados em condição de trabalho escravo;
  3. Vaza a informação de que um franqueado relevante em uma rede de franquia de serviços de beleza feminina já foi condenado por crime de violência doméstica (“Lei Maria da Penha”);
  4. Torna-se pública uma sanção expressiva atribuída ao parceiro que atua com coleta seletiva, em âmbito nacional, por não ter obtido licenças públicas requeridas na atividade;
  5. A imprensa divulga o envolvimento de um importante prestador de serviços de manutenção em um caso de corrupção.

As situações descritas (são exemplos reais) não deixam dúvidas de que obter informações prévias e continuadas sobre a integridade de terceiros é uma prática de governança fundamental.  O grande desafio é “como graduar a integridade de um terceiro?”.

Na determinação do grau de risco de integridade de um terceiro, busca-se qualificar uma pessoa física ou jurídica que deseja integrar o ecossistema da organização, a partir de desvios ético-reputacionais eventualmente identificados a seu respeito.  Os marcos referenciais para graduação da integridade de um terceiro podem ser encontrados nas políticas internas da organização (Código de Ética e documentos similares), no mapeamento de riscos do empreendimento e na magnitude de danos que os riscos podem causar, se materializados – considerando-se, naturalmente, o apetite e a tolerância ao risco definidos pela organização.  O gráfico a seguir permite coordenar a visão de apetite ao risco com os graus de risco de integridade aferidos para terceiros, estabelecendo um direcionamento genérico (guideline) que a organização pode adotar para os diversos perfis mensurados (Gráfico 1).

Gráfico 1

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O grau de risco de integridade (no Gráfico 1, acima, indicado na coluna “Escore de risco”) é uma das principais referências utilizadas pelas organizações para decidir sobre iniciar e/ou manter um relacionamento de negócio ou institucional com um terceiro.

Os escores de risco usualmente refletem uma média geral do conjunto de achados detratores identificados nas diligências de integridade de um terceiro.  Entretanto, alguns desvios ético-reputacionais podem ter um peso tão significativo, que interferem diretamente no escore final e, consequentemente, na avaliação de risco de integridade como um todo, a ponto de justificar uma salvaguarda mais estrita específica.  Portanto, ao graduar o nível de risco de integridade de um terceiro, não leve em conta apenas o escore geral aferido, mas também os conteúdos de cada achado capturado em suas pesquisas de background check (the devil is in the details…).



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